O buraco esquecido da rua

No jargão do jornalismo, “buraco de rua” é a típica pauta insignificante relegada aos inexperientes ou inexpressivos na atividade do relatório social jornalístico, mas que é o grosso do cotidiano das redações, o que o jornalista mais odeia quanto mais precisa fazê-lo. No entanto, mil anos de reportagens acumuladas sobre o descaso da prefeitura ou do estado com as ruas e a urbanização jamais produziriam um único retrato psicossocial do que causa esse fenômeno tipicamente brasileiro, que no fundo reflete a profunda fossa psicológica em que o Brasil está enfiado. (mais…)

Vozes desorientadoras

A parte mais importante da busca de orientar-se no mundo é saber a que se ater. O que realmente importa? Porque focar no que não importa é perder tempo e o tempo é a unidade de medida da vida. Quem perde tempo perde a vida aos poucos. O tempo, disse Almeida Garret, é a única coisa que justifica a avareza. Nessa busca, parece essencial conhecermos os tópicos do mundo, os tópicos medíocres e os tópicos superiores. De modo geral, sempre nos parece que o mundo se atêm exclusivamente ao prazer, a um ideal específico de vida que se coaduna com o prazer e a fuga da dor ou incomodidade. Mas isso parece bastante reduzido. O prazer que o mundo busca não é sensitivo, embora por vezes o utilize como meio. Busca, isso sim, a transcendência perdida; fugiu do medo e da confusão refugiando-se na certeza abstrata para cair, enfim, na amarga decepção da incerteza. Vive a buscar o sentido, a tentar retirar do corpo a alma presa, da paixão o amor soterrado por impressões enganadoras. E conclui que tudo é engano.

Se retrocedermos às origens das nossas opiniões e crenças mais banais, chegaremos a afetos injustificados, comuns a multidões de espectadores, consumidores, cidadãos — categorias a que foi reduzido o gênero humano. Define-se pelas ideias, mais coletivas que individuais. Milhões de pessoas e nenhum indivíduo entre eles. Onde um ou mais repetirem os chavões e lugares comuns, ai estará a cultura de massa encarnada falando por eles — porque não será mais eu que digo mas a mídia que diz em mim.

O triste e infeliz resultado dessa busca filtrada e intermediada pelas vozes da cultura gerou o senso contrário à vida. O artista que tentou pintar um quadro da vida viu seus quadros serem colocados no altar da própria vida. A imagem moderna e pós-moderna da vida, essa vida sem morte, sem dor, sem o que a humaniza. Quando convencemos as pessoas de que o desenho de uma árvore é a própria árvore para enaltecer a sua vida, acabamos por matar a verdadeira árvore desidratando as suas raízes. Agarrados ao simulacro que as palavras produzem, o homem não faz mais questão de olhar o mundo sem o óculos da cultura, pois este se tornou incompreensível para ele. Assim é que o homem diz amar a vida e por isso mata. Busca um conceito válido de vida, que não desagrade nenhuma outra proposta. E assim pratica o aborto e a eutanásia. Porque todo conceito precisa ser válido e para isso, escolhido por todos. Mas a verdade não é escolhida.

A primeira resposta da pergunta “a que se ater?” é a Verdade. Mas verdades há muitas, tantas quantas vezes seria possível usá-la como instrumento de mentiras. O caminho da Verdade parece ser a decupagem da mentira. A voz da cultura pode ser o primeiro obstáculo, a primeira faixa de terra a ser traspassada, o primeiro oceano a ser ultrapassado mesmo sob o risco de perder-se e ficar por anos à deriva nas águas. Esta viagem transoceânica encontra ilhas, pedaços de terra firme mas insuficientes. É preciso achar o continente. O astrolábio essencial não é feito do consequencialismo das experimentações e dos erros, tampouco pode contentar-se com a observação das constelações dos princípios universais. É preciso mais. O melhor instrumento é a bússola, que busca no magnetismo da Terra, ação contínua e infinita que nos abastece de liberdade e guia nossa consciência.

A cultura em si não é boa nem má, tal como qualquer instrumento. Um machado pode servir para cortar lenha e aquecer uma família, mas também para decepar cabeças de inocentes. A cultura pode nos ter legado as meditações de Santo Agostinho sobre a insuficiência da linguagem. Mas pode nos fazer crer que essa limitação nos impõe a aceitação de consensos válidos e que a linguagem é a única coisa que temos. Assim, a cultura se torna o deus onipresente.

Se São João Paulo II fez sua Teologia do Corpo, para sabermos a que serve, de que serve e para Quem serve o corpo. Bento XVI fez sua teologia da cultura. Para que serve e a quem serve a cultura? Se uma visão do corpo, da matéria, do mundo, está impressa na cultura de cada tempo, nos importa cada vez mais retroceder à raiz dos conceitos, das compreensões, à alma dos princípios que nos ditam nossas concepções sobre o mundo para além da cultura e da natureza. Outro conceito complicado esse o de natureza. Fala-se em “sobrenatural” quando um fenômeno escapa do conceito abstrato de natureza. Mas e o que tem a dizer a natureza própria, a natureza que escapa das regras de causalidade das ciências? Não seria essa a natureza divina? O conjunto do humanamente mensurável não é nada se comparado ao que Deus criou. O mesmo vale para o que a cultura nos diz do mundo e de nós mesmos. Quase nada.

Mais importante do que nos atermos aos fenômenos é retrocedermos à análise dos conceitos que usamos para nos referirmos aos fenômenos. E mais ainda, às condições culturais que os geraram para chegarmos às condições pessoais, biográficas e, enfim, à consciência mais libertada possível. Se é impossível não sabemos. Ao menos isso deve ser desejável para uma suficiente objetividade e justiça. Trata-se de um dever de caridade buscar a justeza da compreensão. Como diz Bento XVI, “a racionalidade imanente da criação é muito maior do que a razão do homem da técnica”.

ÚNICA OBRA, ÚNICO AUTOR

Admirar Deus como um dramaturgo da vida real, um escritor que traduz na realidade o cômico, o trágico, épico e o irônico, Autor de incríveis personagens reais, parece estar na raiz daquilo que nos motiva a rir diante da própria tragédia e de si mesmos ou admirar tanto a complexidade quanto o ridículo presente no outro. É uma forma de amar a Deus, admirar a Sua obra que é a inspiração máxima de toda a arte.

Toda arte é imitação de Deus. Na pintura e escultura ficam óbvios os olhos de amor e admiração diante do referente dado, assim como na música e na filosofia. Se o referente dado da pintura pode ser uma paisagem natural, da escultura o corpo humano, na música é o tempo medido, a combinação criativa de notas e tempos que produzem sentido, linguagem e significado. Na filosofia é a verdade, mas também a capacidade herdada que a busca, desde o caos de impressões e pensamentos, verdade eterna e atemporal.

Porque toda autoria é análoga. Toda obra é repetida e todo o verdadeiro é verdade emprestada, suplicante pelo pão da Verdade. O único credor e fiador, único artista e prosador, que cria a vida e a morte, é Ele, único autor.

Pai – Causa das causas, tende piedade de nós!
Filho – Senhor dos senhores, tende piedade de nós!
Espírito Santo – Verdade das verdades, tende piedade de nós!

 

OLARIA ABANDONADA

Debaixo do barro vertido da terra, úmidos tesouros se amontoam. Resquícios de um mundo passado, remotos campos verdes e cristalinas sangas se erguem vitoriosos após a terrível tempestade que ensurdeceu, emudeceu e apavorou. Vento que arrasta esperanças, soterra lembranças construídas por mãos cansadas. Mas derrotados pelo tempo, homens se levantam e acendem a chama em teu interior como a te fecundarem para a vida. Levanta-te como mãe que acolhe os filhos. Telhados vistos no poente de um campo são a tua imagem. A majestosa chaminé que mostra os tijolos fruídos de seu próprio ventre, seio de um Sol nascente, do qual floresce a relva que chorou a tempestade.

Ninguém te semeia sem antes nutrir-te do que é necessário. Tua necessidade é a seiva civilizatória do suor dos operários, filhos diletos da mãe oleira, velho telhado de esqueleto à mostra que beira o rio, rodeia cercas farpadas, donde vê-se majestosa a barbada figueira. Alimenta-te da terra que nutre as árvores, mas nutre tua fornalha da farta madeira. A tua vida sinaliza o fumo abrasador. O fogo que te alimenta produz o negro vapor, sinal de trabalho e fonte de vida. O valor da tua chama se faz evidente nas mãos calejadas e no calor da cobertura, esperança dos destelhados, muros desmoronados.

Mas se de vida o negro vapor é o sinal, o céu azul e límpido é a tua imagem final. De esqueleto exposto, teu telhado afundado com o tempo deixa à mostra tua dor interior. De tantas, tu fostes mais uma que caiu. Tua chama jaz apagada na fornalha, tuas lenhas empilhadas em vão e o barro acumula-se em tua volta. Ninguém mais te fecunda nem faz do barro a tua vida. És uma pobre e triste olaria abandonada.

 

 

O ALTAR DO DESTERRO

Na Catedral de Nossa Senhora do Desterro, de mãos juntas e passos lentos, rumo ao fim de uma fila que se arrastava, olhei o alto da abóbada do majestoso simulacro dos céus que se erguia, ornamentos em formas variadas, circulantes, como nuvens que indicavam a ordem celeste do firmamento. De repente, eu estava diante do portal dos Céus, como o momento mais esperado de uma vida, no fim e no início de tudo — onde ao fim da fila aguardava um anjo alto, guardião de toda a luz da qual as outras são meros reflexos, cegantes raios de uma luminosidade que atraia o olhar ao invés de repelir. O portal para o qual eu andava era um arco dourado rodeado de anjos. O canto musical entoava o ritmo idílico do passo, circular melodia que serenava os ânimos e animava o sereno imaginário das bênçãos que caiam das nuvens. Tranquilizava as vozes do coração. E no meu coração reinava o silêncio. Silêncio emoldurado pelo coro de vozes em harmonias que subiam, subiam, o tom de cores vibrantes em branco, claríssimos véus que voavam num vento morno e acariciante. Rumava para onde toda a inquietude do coração se dissipa… E aproximava, aproximava, do fim que era o início. E olhando o alto, as linhas perspectivas iam curvando-se devido à minha pequenez de alma a ser salva, de cujo corpo não mais tomava conhecimento algum. A cada passo ficava eu menor, curvando o pensamento diante da beleza e inebriado sob o teto iluminado pelo colorido dos vitrais. Vi que todas as luzes do mundo são opacas perto desta. Todas as cores são mortas, todos os prazeres são efêmeros. Todas as certezas insuficientes. Todo o bem mero testemunho do verdadeiro. E cheguei finalmente ao anjo que era o Destino. O destino da fila. Então vi, num vislumbre de vigília em meio ao sonho, que se tratava do piedoso padre Davi. Num movimento repetido, levantou a hóstia mecanicamente e disse numa voz quase inaudível: “o Corpo de Cristo”. Tomei-a e obedeci. Voltei ao banco. Num sinal de devoção, retornei o olhar à cruz do altar e limpei os olhos e ouvidos da nuvem do pensamento e da distração. Mas agora o altar estava novamente longe. Aquela aproximação do Céu teria sido um sonho? Um devaneio? Um delírio poético? Como o sonho feliz que é interrompido quando se acorda, uma tristeza ligeiramente se abateu. Eu estava quase lá! Estava quase a entrar no Céu! Cá estou prostrado de joelhos diante de Deus a pedir: Senhor, que um dia eu não volte para o banco do desterro.

Pobres de nós que estamos todos desterrados neste mundo…